domingo, 8 de novembro de 2009

O muro interior...

O Historiador Eric Hobsbawm diz que a queda do muro de Berlim, em 9/11/1989, desestabilizou a ordem mundial e criou um Estado generalizado de insegurança.


Marcos Flamínio Peres
Editor do Mais!

Ícone da historiografia de esquerda, o britânico Eric Hobsbawm não perdoa: para ele, o principal efeito da queda do Muro de Berlim, em 1989, foi a desestabilização da geopolítica mundial em prol da única superpotência remanescente -os EUA. Como consequência, o mundo se tornou mais perigoso. Em "A Era dos Extremos" (Cia. das Letras), ele já defendera os desdobramentos da queda do muro como cruciais para o século 20. Mais do que isso: cruciais para encerrá-lo antes da hora. Daí o termo que cunhou, "breve século 20".
Já do ponto de vista econômico, Hobsbawm afirma que o pós-1989 levou a um recorde de desigualdade social nos países da antiga Cortina de Ferro -termo que designava, durante a Guerra Fria, os países comunistas europeus sob influência soviética.
Sobre Berlim, cidade que cristalizou a derrocada da velha ordem e o início da nova, o pensador se mostra decepcionado, na entrevista que concedeu por e-mail à Folha.
Apesar de haver se tornado a capital do Estado mais rico da União Europeia, Berlim não se tornou a virtual capital da Europa -como se esperava 20 anos atrás- nem ficou à altura de seu glorioso passado anterior à ascensão do Terceiro Reich (1933).
Coerente, Hobsbawm vê a crise financeira que assolou os mercados financeiros em 2008 como o "Muro de Berlim do neoliberalismo". Ele detecta nesse aparente revés capitalista a possibilidade de rearticulação do pensamento de esquerda -mas desta vez, alerta, em bases "mais realistas".



FOLHA - Passados 20 anos, qual é o legado político e econômico da queda do Muro de Berlim?
ERIC HOBSBAWM - O legado econômico é certamente menos dramático do que o político. Economicamente, significou a destruição do que restara de um sistema socialista planejado na União Soviética e na Europa do leste -que já estava em declínio- e a integração da antiga região socialista à economia capitalista global.
Isso levou a um colapso social e econômico na ex-União Soviética, embora, posteriormente, a Rússia e algumas ex-repúblicas soviéticas tenham visto alguma recuperação, baseada nos altos preços da energia e dos insumos industriais.
Com algumas exceções, a região provavelmente permanece, em termos relativos, mais atrás do Ocidente do que estava antes da queda do muro. Ela desenvolveu um nível chocante de desigualdade econômica.
Os efeitos políticos, por sua vez, têm sido enormes. Eles reduziram a Rússia de superpotência a um Estado não maior do que era no século 17.
Além disso, a União Europeia saltou de 15 para 27 Estados, e foi criada uma Alemanha unificada no coração do bloco.
Também foi reintroduzida a guerra [conflito nos Bálcãs nos anos 90] e a instabilidade política na Europa, após o colapso do único Estado comunista, a Iugoslávia. Isso acabou por tornar os Bálcãs mais "balcanizados" do que antes.
Outro efeito da queda do muro foi a destruição de um sistema internacional estável.
Isso porque se atribuiu aos EUA a ilusão de que poderiam, como única superpotência global, exercer sua hegemonia no mundo todo -o que acabou por transformar o mundo no lugar perigoso de hoje em dia.



FOLHA - Berlim não se tornou uma das principais capitais europeias, como se previa 20 anos atrás, e a Alemanha, embora rica, foi há pouco superada economicamente pela China. Nesse sentido, a queda do muro foi um fracasso?
HOBSBAWM - Berlim não se tornou uma grande capital europeia porque a reunificação política das Alemanhas Ocidental e Oriental não teve como recriar um país genuinamente unido.
A antiga Alemanha Oriental -embora seus habitantes estejam hoje muito melhor do que estavam antes de 1989- perdeu sua base econômica para a Alemanha Ocidental. Além disso, apresenta índices de desemprego elevados e continua a perder sua população para a antiga Alemanha Ocidental.
Berlim tem muito poucos habitantes para uma cidade com sua importância histórica.
Para quem a visita, ela parece uma pessoa encolhida usando um sobretudo grande demais para seu peso atual. Culturalmente, nunca reconquistou a posição que detinha entre 1871 [quando o Império Germânico inaugurou o Segundo Reich] e a ascensão de Hitler [em 1933].
Isso não quer dizer que a Alemanha como um todo esteja em declínio. Ela, por exemplo, não pode ser comparada com a China (80 milhões de habitantes contra 1,3 bilhão). Mesmo com um PIB maior do que o da Alemanha, a China é muito menos desenvolvida, muito mais pobre e menos capaz em áreas como tecnologia de ponta.
Se há perigos futuros para a Alemanha como potência econômica, eles nascem da relativa lentidão do desenvolvimento econômico da UE.



FOLHA - A queda do muro representou o colapso do pensamento de esquerda?
HOBSBAWM - Ela simbolizou, mas não foi a causa, da crise do pensamento de esquerda, que já vinha desde os anos 1970.
Estritamente falando, ela apenas demoliu a crença de que o socialismo de corte soviético (economia planificada comandada por um Estado centralizador que eliminou o mercado e a iniciativa privada) era uma forma factível de socialismo.
Na verdade, como foi a única tentativa de realizar o socialismo na prática, seu fracasso desencorajou os socialistas como um todo -embora a maior parte deles tenha sido crítica do sistema soviético.
Entretanto as raízes da crise da esquerda retrocedem ainda mais. Ela ainda não chegou ao fim, mas o colapso do capitalismo financeiro global em 2008-9 -que foi uma espécie de queda do Muro de Berlim para a ideologia neoliberal- oferece uma chance de reabrir as perspectivas para a esquerda. Mas, espera-se, em uma base mais realista do que no passado.

Fonte: Folha de São Paulo

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