Anotações sobre a escravidão no Brasil Império...[3]
No
livro, Encruzilhadas da liberdade, Walter Fraga Filho busca acompanhar a
trajetória de escravos e libertos durante as duas décadas que antecederam a
abolição, 1888, e os primeiros vinte anos que seguiram aquele evento. Walter
utiliza esse recorte temporal como tentativa de avaliar as conseqüências e
implicações da abolição em uma das regiões que abrigou uma das mais duradouras
sociedades escravistas das Américas, o Recôncavo Baiano. Nesse livro o
autor foca seus estudos nos escravos das grandes propriedades açucareiras, em
uma tentativa de perceber como o fim do cativeiro repercutiu no cotidiano de
parte da população negra que ali habitava. Walter utiliza-se de vários tipos de
fontes documentais (matrículas e listas de escravos anexas aos inventários
post-mortem), inventários, processos-crime, correspondência pessoal e policial,
memórias escritas e orais além de possuir um vasto conhecimento na bibliografia
nacional e internacional que trata da Bahia, do Brasil e de outras regiões do
continente americano. O cruzamento dessas informações possibilitou acompanhar
os indivíduos e grupos familiares ao longo do tempo, informações como
localidades em que nasceram e residiram, nomes das propriedades em que
trabalharam ofereciam indícios dos percursos individuais e as redes sociais em
que estavam inseridos após o fim do cativeiro (esse cruzamento de informações,
o historiador Robert Slenes chamou de “ligação nominativa”, utilização do nome
para desvendar percursos individuais e redes sociais).
Ao
se debruçar sobre o Recôncavo Baiano, local onde se concentrava as atividades
econômicas mais importantes da Bahia no século XIX. O autor demonstra que ali
se encontravam os maiores engenhos (sendo São Francisco, Cachoeira e Santo
Amaro os maiores produtores de cana), o autor salienta que nessa região havia
áreas de plantio de fumo e gêneros alimentícios (feijão, mandioca, milho), quem
tinha como finalidade abastecer as vilas próximas. Visando saber mais sobre as
características da população escrava da região, Walter realiza um levantamento
detalhado dos cativos registrados em inventários de senhores falecidos entre
1870 e 1887 (fonte inventários do Arquivo Público do Estado da Baia). Com esses
dados ele percebe que em alguns engenhos (os documentos estudados faz menção a
dez propriedades) o numero de mulheres era superior ao de homens em algumas
propriedades, o que contrastava com o apogeu a produção açucareira onde a
proporção era de dois homens para uma mulher. Com a proibição do trafico de
escravos foi constatado que a composição étnica das comunidades negras estava
passando por mudanças (10% africanos, 65,3% crioulos e 24, 5% pardos e cabras),
verificando que os nascidos no Brasil constituíam quase 90% os trabalhadores.
Foi
constatado que durante esse período muitos senhores de engenho utilizavam de
mecanismos para que suas propriedades não ficassem paradas, dentre eles:
utilização de mão de obra livre, onde ao final dos serviços eram remunerados
(lembrando que os serviços mais pesados eram destinados aos escravos),
utilização de escravos alugados de outras propriedades. Além do trabalho no
ganho, na criação, caça e pesca os escravos podiam produzir a própria
subsistência em pequenas parcelas de terra, chamada de roça, segundo Pedro
Calmon em seu ensaio sobre o fabrico do açúcar, essa medida distraia as idéias
dos escravos, impossibilitando-os de participar de revoltas. Com a criação da
Lei do Ventre Livre, assinada em 1871, que considerava livre os “ingênuos”,
filhos nascidos de escravos a partir daquela data. Essa lei criou expectativas
de liberdade, esperança de uma vida sem escravidão, sendo assim essa lei
interferiu na forma como os escravos se comportavam diante dos senhores o que
gerou tensões e conflitos.
Walter
também analisa em detalhes a história do assassinato de um frade carmelita
conhecido como João Lucas, assassinado por onze escravos em 1882. Conta a
história oral que o frade trazia à escravaria a rédea curta, a qualquer falta
os negros eram penalizados. Numa época de intenso debate sobre o fim do
cativeiro, realçar a brabeza do senhor frade e o revide escravo trazia uma
mensagem bastante contundente para quem ainda acreditava na sobrevida do velho
escravismo. O autor inseriu esse acontecimento no momento histórico e
principalmente na dinâmica das relações sociais escravistas, onde nos últimos
anos da escravidão no Brasil essa relação foi marcada por intensas tensões
sócias e conflitos, provados em vários estudos da época.
Walter
Fraga aponta a ligação dos escravos dos engenhos aos abolicionistas e às
populações livres, libertos e cativos da cidade, uma vez que essas conexões
sociais no contexto dos embates escravistas são fundamentais para entender como
as agitações de rua repercutiram nas relações escravistas dos engenhos. As
notícias se espalhavam por toda a província, chegavam até as regiões mais
longínquas. Isso possibilitava aos escravos acesso ao que se discutia nas
cidades ou em outros engenhos sobre a escravidão, visto que os libertos eram
importantes informantes. Foram passando os anos e as fugas se intensificaram, e
para os senhores ficava mais difícil reaver os escravos fugidos. Na década de
1870, populares impediram o embarque de escravos para outras províncias, e
houve confrontos com policiais. Na década de 1880, muitos indivíduos oriundos
das camadas populares militaram no abolicionismo organizado. Acirraram os
conflitos entre abolicionistas e senhores de engenho. Desse modo, as repressões
aos abolicionistas aumentaram, já que concomitantemente cresciam as fugas
coletivas, desobediências e insubordinações dos escravos, que muitas vezes eram
atribuídas ao movimento abolicionista. Então, poucos dias antes de anunciar a
Abolição, muitos senhores de engenho perceberam que não adiantava as tentativas
de prender os escravos pela “dívida de gratidão” e que o antigo paternalismo
senhorial era insuficiente para conter a desordem das propriedades.
A
notícia da abolição definitiva do cativeiro foi bastante festejada nas senzalas
dos engenhos e nas cidades da região. Os festejos de 13 de maio
transformaram-se grande manifestação popular, certo de que o povo nas ruas,
maioria egresso da escravidão, era algo que não era bem visto pelas
autoridades. Para se afirmar como livres, os ex-escravos procuravam se
distanciar do passado da escravidão. Já muitos senhores de engenho sucumbiram
financeiramente após a perda de mão-de-obra escrava, uma vez que a abolição
coincidiu com a crise econômica que atingia a lavoura canavieira baiana,
implicando em dificuldades de subsistência que diminuiu até o poder de
negociação dos libertos com os senhores. Destarte, nas memórias, romances e
relatos feitos pelos senhores de engenho, a abolição apareceu como ruptura
decisiva dos padrões, etiquetas e valores estabelecidos. Então, os senhores de
engenho com dificuldades queriam tirar proveito, buscando indenizações – linhas
de crédito. Igualmente, esperavam arrancar do governo leis que garantissem
algum controle sobre os libertos. A partir de 1888, intensificaram-se as
queixas dos senhores de engenho em relação aos incêndios de canaviais, era
forma de sabotagem bastante usada pelos escravos. Porém, os senhores de engenho
buscavam se aproveitar politicamente dos episódios, e posteriormente se
convenceram das inconveniências das leis anti-vadiagem.
Com
o 13 de maio pessoas e famílias utilizaram diversas estratégias e arranjos para
se manterem de pé e dar sentido as suas vidas. Ocorreram mudanças nas
trajetórias de vida, alteração de sobrenomes, aprendizados de novas profissões
(sobretudo aqueles que tentaram melhores condições de vida na cidade),
reaproveitamento das experiências profissionais e dos laços sociais elaborados
no tempo de cativeiro, elementos que ajudam a elucidar os caminhos
escolhidos pelos ex-cativos. Maracangalha é um dos engenhos que reúne as características
acima descritas, muitos egressos se mudaram para esse engenho a fim de rever
parentes e fixar moradia, muito desse deslocamento foi um prolongamento das
crescentes fugas de escravos a partir da década de 1880, originada a partir da
fragmentação da sociedade escravista como um todo. As autoridades cada vez mais
interferiam nas relações entre senhores e escravos, explodiram denúncias em
jornais abolicionistas, bem como denúncias feitas pelos próprios escravos a
autoridades policiais. Deste modo, Maracangalha que fora abandonado pelo seu
dono, o Barão Moniz Aragão (que com constantes conflitos com seus escravos foi
para outro engenho seu, o Mataripe), significou aos recém-libertos a experiência
de liberdade, direito a terra para plantar, acesso livre às feiras locais, a
possibilidade de decidirem com autonomia sobre a produção e valores a
serem comercializados, bem como o tempo de ócio e lazer. Os ex-cativos reagiram
as práticas que tentaram persistir da época da escravidão, como por exemplo, a
ração dada como alimento e a obrigação de pedir permissão ao senhor para se
locomoverem.
Outros
ex-escravos decidiram ir para as cidades, o autor analisa os seguintes
destinos: Santo Amaro, Cachoeira, São Sebastião do Passé e Salvador, além de
outros que decidiram retornar para a África. Esses deslocamentos tanto poderiam
significar o reatamento de laços afetivos como o distanciamento do passado
escravista, além da perspectiva de melhora de vida. Ao chegar às cidades desempenharam
atividades variadas, as maiorias aprendidas na época da escravidão tentaram na
maioria das vezes reproduzir laços afetivos e de amizade do tempo do cativeiro
em meio a urbe. Muitos, no entanto não encontraram "lugar para ficar"
engrossando as fileiras de desempregados e vadios, imagem que começou com
as alforrias em massa que se intensificaram na década de 1880 e que se
mantiveram até inícios do século XX, quando a migração para as cidades tendeu a
se estabilizar. Vale ressaltar que vadiagem na visão de muitos senhores significava
justamente este deslocamento dos ex-cativos sem a deliberação dos mesmos, este
cenário foi utilizado principalmente para convencer as autoridades da
indenização pela perda da propriedade escrava. A esperança de que as mudanças
fossem mais incisivas, que garantissem a sobrevivência digna e a percepção de
que viver sem ter que se sujeitar era o acesso a terra (já adquirido em muitos
casos antes do 13 de maio), comer carne fresca, permanecer ao lado de
familiares, ter remuneração justa e tempo livre, enfim este era o sonho de
cidadania pretendido pelos que a lei Áurea libertou.
REFERÊNCIA:
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade:
histórias de escravos e libertos na Bahia, 1870-1910. Campinas, SP: Ed.
UNICAMP, 2006.
Marcadores: Brasil Império, Escravidão
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