Porque Tudo Muda...

sábado, 20 de outubro de 2012

Alegria...

Sob o sol de janeiro, sob o clima árido da caatinga, sob os cuidados de meu avô: assim eram minhas férias. Há imensa saudade daquele tempo em que passar algumas semanas na roça me distraía completamente da agitação da cidade, lá não havia nem luz elétrica nem água encanada, nem telefone nem televisão... Tinha meus tios e meu avô, tinha a paisagem seca e o sol quente.
Vegetação rala que mal dava para alimentar o gado. Uma vez, diante um período de grande estiagem, tivemos que levar os animais para beber água num açude e se alimentar noutras pastagens, pois lá na fazenda já não havia o que comer nem beber. Caminho comprido, caminho cansativo. Àquelas horas em que passamos na estrada (das quais não esqueço) foram eternas.
Ainda chegamos antes do meio-dia novamente em casa, mas todos estavam cansados, os pés doídos de andar naquele solo vermelho, a pele queimada por causa do sol escaldante. Entretanto, no campo há sempre no que trabalhar sobretudo em dias difíceis como aqueles, e todos retornaram ao pasto. Eu fui também (apesar do cansaço). Sentado à sombra de um umbuzeiro, dentro de uma galinhota, via meu avô consertar cercas, limpar o pasto, recolher a lenha e carregar água (retiradas de um tanque barrento) para levar para casa.
Eu via isso tudo, estava feliz; naquele tempo em que as vacas me pareciam animais gigantes e os umbuzeiros meus castelos.
O fim do dia, deste dia chegou. O sol se escondia por detrás da serra, eu de novo em casa, mas agora brincando no terreiro. Vi meu avô, após guardar as últimas ferramentas, sentar-se num velho banco de madeira na frente de casa e abaixar a cabeça: estava desanimado, não havia sinal de chuva, o rebanho longe da fazenda e muito trabalho em sua roça. Parei de brincar, fitei-o com olhar de felicidade por estar ali com ele (como em todas as férias), toquei seu ombro e ele lentamente pôs seus olhos em minha direção... Depois de alguns segundos diante o rosto cansado de meu avô, exclamei:
- Vovô, o senhor é minha alegria!




Imagem extraída de: Jmadureira

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segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Outra órbita...

 Uma tarde nublada de sábado, um passeio despretensioso, previa-se passar por lugares já anteriormente vistos. Destino: rota do Aqueduto da Água da Prata. Sendo um roteiro já visitado poder-se-ia pensar em poucas surpresas. E enquanto se caminhava, margeando a estrada que liga Évora a Arraiolos, de novo se tinha a entrada do Convento de Santa Maria Scala Coeli, popularmente conhecido como Convento da Cartuxa*.

Ao adentrar no caminho que dá ao seu portão principal sobreveio novamente todo encanto e magia que os ares deste convento proporciona. Próximo a seu portão principal havia um carro, coisa estranha na porta de um convento em que tem característica semi-eremítica de clausura monástica. Ao chegar mais perto percebeu-se que também eram curiosos que observavam entre as frestas do portão a esplêndida fachada renascentista em mármore.
Enquanto os curiosos se entreolhavam naquele ambiente sereno, surgiu por detrás do grande portão de ferro um senhor de aparência jovial e vestido de hábito branco, era um irmão do convento. Ao se aproximar da gente, meio desconfiado nos pediu educadamente que saíssemos da linha do portão, para que aqueles que estavam do lado de dentro não nos avistasse. Apesar de soar estranho, o que acontece é que, na ordem dos cartuxos, os irmãos (no convento só há homens) vivem todo o tempo em clausura (e esta foi minha alegria, pois é pouco provável que encontre um cartuxo novamente).
O simpático irmão cartuxo começou explicando que saiu de lá de dentro achou um de nós conhecido, pois era aniversário dele, e por isso excepcionalmente ele estava esperando visita de uns amigos. Talvez por isso ele se aproximou tão desconfiado e um tanto quanto desapontado, mas não deixou de nos receber a frente de sua casa há 46 anos, o Convento da Cartuxa.
Um encontro inusitado e uma conversa cheia de raridades, o irmão cartuxo para puxar assunto começou falando de como tinha entrado na Ordem dos Cartuxos** há 46 anos, e naquele sábado completava 75 anos de vida. Contou sua história falando que era moçambicano, mas quando jovem fora estudar no liceu de Lisboa. Após ter sido reprovado algumas vezes, foi presenteado com um livro de devoção ao Sagrado Coração de Jesus e que naquele livro ele encontrou alguém que o amava do jeito que ele era, sentiu acolhido por Jesus e decidiu dedicar sua vida inteiramente a Ele. Ao entrar na Ordem, deixou tudo para trás e talvez para frente, pois diante do caráter semi-eremítico e dos votos de pobreza da ordem, os irmãos cartuxos até pouco tempo não tinham eletricidade no convento, eles quase não possuem eletrodomésticos, muito menos eletroeletrônicos. Quando saem para passear já não vão a pé, pois Évora já é uma cidade “grande” e com muitas pessoas, por isso vão de automóvel vendo a paisagem, escolhem lugar ermo e caminham para contemplar a paisagem.
Com um falar manso e ligeiro ao mesmo tempo, acredito que também curioso com nossa presença, ele nos perguntou de onde éramos: havia ali diante dele dois brasileiros, uma espanhola e três portugueses. Ao falar do Brasil, ele comentou que tinha algum parente casado com uma brasileira e ainda nas incursões sobre dialogar com um mundo exterior falou de um primo que era jogador de futebol, um tal de Juca*** que jogou pelo Sporting de Portugal e também de Pepe, um jogador brasileiro que ele conhecia. Pepe? Ah! O Pepe do Santos, aquele da época de Pelé. Pois, esta é a noção de tempo do nosso amigo cartuxo: o tempo em que ele entrou na Ordem, depois disso já não há outra vida se não dedicar-se as coisas de Deus sob a proteção de Nossa Senhora, a quem é dedicado o convento de Évora sob a invocação de Scala Coeli (escada do céu).
Já no fim do assunto, mas sem muito que dizer pediu para que rezássemos por ele e nos perguntou nosso nome, mas afirmando que não demoraria a esquecer. Ao saber que meu nome era Rafael prontamente indicou que aquele sábado 29/09/12 era o dia dos Santos Arcanjos. Em seguida, perguntei seu nome e o irmão cartuxo se apresentou como Antônio Maria para enfim nos despedirmos.
Para finalizar, fiquemos com o lema da Ordem dos Cartuxos: “A Cruz permanece intacta enquanto o Mundo dá sua órbita”.
  


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